terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Rewind!

Ahh.. o Natal. O que dizer sobre este tempo festivo?.. Poderia dizer muita coisa boa, mas não vou dizer nada.
Foi bom dar um descanso a Milão e ao blog e passar tempo com a família e amigos mais saudosos. Estive assim de ressaca e agora estou pronto para voltar à batalha em terras milaneses, lutando dia a dia pela minha vida, correndo perigo de morrer a qualquer instante! É assim a minha vida em Itália. Um risco a torto e a direito.
Parto amanhã no meu navio pirata às 17h e chego lá por volta das 20.30.
Ponto nº1:
É dia 31. Passagem de ano avizinha-se.
Ponto nº2:
E se o avião se atrasar 4 horas? Terei de passar o ano dentro do avião?! Será uma passagem de ano diferente é certo, mas... não era bem o que tinha em mente. Quero passar em Milão porque sempre passei em Portugal. Quero que seja diferente desta vez. Para além do mais não ligo nada à data. Sorry New Year.

Deixo-vos aqui uma pequena história amargurada.

Sentei-me na escrivaninha e com o meu isqueiro acendi uma pequena vela afundada em cera que estava em cima da prateleira. Pelas minhas contas esta seria a décima carta que escreveria ao mesmo destinatário de sempre: eu. Desde há treze semanas atrás que vinha uma vez por semana a casa do meu pai. Antes de isso, não falávamos há quase dez anos por motivos que nenhum de nós se lembra, muito menos o meu pai, pois tem alzheimer.
Recebi uma carta da Sra. Cappa, uma simpática senhora italiana nos seus 70 anos e vizinha do meu pai que o visitava de vez em quando para saber se ele precisava de alguma coisa. Apesar da idade, continuava muito bem de saúde e fazia questão de todas as semanas comprar os bens necessários e encher o frigorífico do meu pai. Ao encontrar um dia este perdido no terraço sem saber onde era o seu andar, a Sra. Cappa percebeu que algo de errado se passava e acompanhou-o no próprio dia ao hospital onde lhe foi diagnosticado Alzheimer. Estava no começo da doença, onde esta atordoa a memória e confude a pessoa, alastrando-se até ao ponto da perda quase total da identidade. Foi assim que o meu pai revelou à Sra. Cappa que não me via há muito tempo e que o seu último desejo era voltar a falar comigo. Uma última conversa para que pudesse descansar em paz e ficar com a consciência limpa, mesmo que esta fosse ser apagada para todo o sempre.
Quando li a carta da Sra. Cappa formou-se um grande nó na minha garganta e por pouco não desatei a chorar. Contei à minha mulher e esta aconselhou-me sensatamente a ir visitá-lo e preparar-me para a possibilidade de o meu pai não me reconhecer passado tanto tempo e para mais com a doença a toldar-lhe a memória. Preparei a minha bagagem emocional e pus-me a caminho.
O meu pai continuava a viver no mesmo apartamento de sempre. Fora onde eu crescera e onde passara bons momentos familiares. O prédio situava-se numa boa zona, segura, limpa e com uma vizinhança simpática e prestável. Foi estranho sentir um flash de recordações e sentir a nostalgia entranhar-se na minha mente. Já não ia ali há muitos anos mas mesmo assim as coisas não tinham mudado quase nada.
Parei em frente a uma grande porta azul e toquei à campainha da porteira. Quem me veio abrir a porta não foi uma mulher como esperava, mas um homem baixo, com bigode e nos seus cinquenta e poucos anos.
- Sim? – disse ele.
- Boa tarde, queria saber qual é o andar do Sr...
- Ah, a Sra. Cappa falou comigo – interrompeu-me o porteiro. Falava rápido e comia um pouco as palavas, que se tornavam difíceis de compreender – Quer falar com o seu pai não é assim?
- Exactamente.
- Eu próprio levo-o lá! Não estava a fazer nada de qualquer maneira.
Subimos assim até ao terceiro andar pelas escadas visto que o elevador estava avariado. O porteiro chegou lá acima ofegante e com um ar um pouco arrependido de se ter decidido em acompanhar-me.
- É aqui mesmo – disse ele ainda com a respiração acelerada – Toque na campainha e espere. Ele às vezes demora a vir mas vem sempre.
Agradeci e toquei duas vezes na campainha dourada. Devo ter tido sorte pois não esperei muito. Ouvi passos lentos a dirigirem-se para mim e de repente a porta abriu-se até onde a corrente de protecção permitia. O olhos do meu pai surgiam da escuridão e com esforço consegui ver algumas rugas de expressão que tinham surgido com o passar dos anos. Depois de me observar com atenção fechou a porta e ouviu-se um barulho metálico. A porta abriu-se completamente e pude finalmente ter uma imagem completa do que o tempo fizera ao meu pai. De facto, estava mais velho, mas não estava muito mal para a idade. Vestia um fato castanho, com uma camisa branca, com os botões apertados até acima mas sem gravata. Um pequeno sinal de que a memória começava a ser afectada. Fiquei contente por ve-lo passado tanto tempo e nesse momento senti um alívio, como se uma enorme bigorna tivesse sido tirado de cima de mim.
Comecei a visitar o meu pai todas as semanas, e falámos de tudo o que nunca tinhamos falado. Com algumas falhas de raciocínio, a conversa por vezes podia-se tornar repetitiva e lenta, mas ficávamos felizes só pelo simples facto de estarmos ali juntos outra vez. Mas a partir da terceira semana, quando o meu pai me abriu a porta, ele não me reconheceu. Percebi então que a doença se tornava cada vez mais forte e que consumia todas as memórias, mesmo as mais fortes. Disse-lhe que era o seu filho, ao que ele aceitou um pouco confuso e convidou-me a entrar. A meio da visita, pediu-me para escrever uma carta para o seu filho que já não via há muito tempo. Voltei a explicar-lhe que eu era o seu filho e que já ia lá a casa há umas semanas. Mas por mais que explicasse parecia que caía tudo em saco routo e por isso resignei-me e comecei a escrever as cartas. Aprendi a ser ainda mais paciente e a escrever tudo tal e qual como ele me ditava, aceitando os erros de lógica, as contradições, as repetições. Afinal, eram cartas para mim mesmo e só eu podia saber qual o verdadeiro significado de todas aquelas palavras que só tinham sentido na memória fragmentada do meu pai e na minha.

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